Gravamos esse disco no inverno de 2017 no Estúdio Shangri-lá, em Porto Alegre, durante um fim de semana (se me lembro bem). Quase tudo foi gravado com banda ao vivo em estúdio. Os fantásticos vocais do Edu K foram gravados posteriormente em uma ou duas noites com uma garrafa de Dreher. Acho que fizemos alguns overdubs na minha casa também.
Lembro que o Gabriel Boizinho, então baterista da Cachorro Grande e gênio da timbragem de tambores, passou um dia afinando a bateria. Na manhã do sábado chegamos no estúdio e fui sozinho pacientemente microfonando toda a bateria, montando a sessão no Pro Tools, ligando instrumento por instrumento. Quando comecei a levantar os volumes, instantaneamente tínhamos um sonzão! Bruno Suman era o escolhido para a bateria. Zê, no baixo, estava plugado num DI, puro sem nada. Eric Endresera o homem das guitarras impecáveis. Pedro Petracco comandava os teclados: vários e vários timbres e samples direto do seu laptop, ligado num Ableton Live, mandando um par de cabos pro meu sistema — nada de MIDI. Acertei níveis de gravação, volumes para os fones de monitoração de cada um, tudo pronto pela manhã… paramos para almoçar.
As gravações começaram logo no início da tarde, não sem antes dar pau em alguma coisa, o normal de qualquer sessão feita nesse planeta. Até o final do primeiro dia, já tínhamos boa parte das bases gravadas.
Edu K, frontman absoluto, estava todo montado, toda drag. Cabelão megahair cacheado (o mesmo da foto da capa), maquiagem peasadíssima, caras e bocas nas selfies disparadas a cada minuto e meio mais ou menos… até o trabalho começar. Como vocalista, não tinha o que fazer ali ainda. Como produtor, ele desempenhava o seu papel brilhantemente como sempre. Ele é um tipo de cara que parece não ter dúvidas no que está fazendo no estúdio, está sempre à frente da produção com idéias muito claras sobre o som que quer para cada música. Talvez essa certeza — que cai na teimosia invariavelmente e, não raramente, num pití veterano rabugento — é o que leva vários artistas que trabalham com o Edu como produtor, a se estressarem com ele… ok… Mas esse disco era dele. Solo. E para mim estava claro que eu ali era o seu fiel engenheiro de confiança; “mesário dos sonhos” como ele dizia. hahahah
Uma das coisas principais — senão A principal — na produção musical, é essa relação entre o produtor musical e os artistas, e a equipe de engenheiros e assistentes. O engenheiro de som está ali para realizar a visão do produtor musical . O seu papel não é dar palpite nem emitir sua opinião sem ser perguntado. Mesmo que as relações sejam sempre diferentes em cada caso, é fundamental ter sempre em mente que o artista, e o produtor em geral, tem uma bagagem histórica que não está no estúdio para ser questionada ou discutida. Tirar um sarro fora de hora, comentar o que foi recém gravado ou falar durante a gravação é tipo interromper a missa do papa pra discutir a bíblia! A voz do produtor é lei, a voz do artista é acima da lei, às vezes vice-versa, mas sempre a equipe técnica está abaixo, e como via de regra, melhor se manter calada e tentar entregar o melhor trabalho que já fez.
Com o tempo, respeitando essas regrinhas de convívio, e na medida do bom senso, as relações se entrosam e o trabalho flui cada vez melhor. E então, a música acontece da forma como tem que ser, ou melhor, como o produtor e o artista imaginaram. E assim, o/a engenheiro/a, se mantiver a mente aberta e a atitude certa, vai expandir seus horizontes e acabar o trabalho entendendo que todas as vezes que deu vontade de sair gritando, era só a cabeça em conflito com o que não conhecia. Porque na verdade mesmo, nós somos feitos pra entender o mundo como se fossemos o centro do universo, e sair dessa posição requer esforço. Requer quebrar paradigmas. Requer admitir o desconforto de que não estamos entendendo uma idéia. E um dos grandes baratos desse trabalho de produção musical, é justamente a oportunidade que ele oferece de expandir a consciência através da convivência com o processo criativo das outras pessoas envolvidas no projeto.